Parentes de pessoas encarceradas têm um papel fundamental em denunciar condições deploráveis e violações dos direitos humanos em unidades prisionais. No entanto, existem esforços para desacreditar, retaliar e até criminalizar essas famílias, que são canais diretos entre a prisão e os órgãos denunciantes. Ameaças de suspensão de visitas e punições aos detentos são exemplos das ameaças relatadas por eles.
'Os familiares são a espinha dorsal da prevenção e combate à tortura', afirmou a coordenadora do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), a advogada Carolina Barreto Lemos. De janeiro a julho de 2023, em São Paulo, o número de denúncias de violações de direitos, como tortura, punições, abusos e ameaças sofridos por pessoas encarceradas, triplicou. As denúncias à Defensoria Pública do estado (211 casos) são 3,45 vezes maiores do que as denúncias recebidas durante todo o ano passado (61).
Lemos enfatiza a importância dos parentes como suporte para os órgãos que combatem as violações de direitos humanos nas regiões, sendo presenças constantes e denunciando abusos às autoridades competentes. 'Não se consegue prevenir e combater a tortura sem os parentes, porque eles já fazem esse trabalho de certa maneira ao visitar o sistema de prisão. A própria presença deles funciona como um vetor de prevenção e combate à tortura', disse.
Em várias inspeções realizadas pelo Mecanismo no ano passado, parentes ajudaram a identificar as unidades prisionais mais importantes para visitar e foram convidados como especialistas. 'Nós temos o direito de trazer especialistas, porque entendemos que essas pessoas conhecem aquele espaço melhor do que ninguém', declarou Lemos.
O MNPCT é parte do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, estabelecido por lei federal em 2013. O órgão é composto por 11 peritos independentes que podem acessar instalações de privação de liberdade, como centros de detenção, hospitais psiquiátricos, abrigos para idosos, instituições socioeducativas ou centros militares de detenção disciplinar.
Em 2019, o governo do presidente Jair Bolsonaro tornou os cargos dos peritos do Mecanismo não remunerados. Todavia, uma decisão judicial, três meses depois, determinou que os profissionais fossem reintegrados ao seu cargo. 'Neste ano, solicitamos um aumento do orçamento do órgão e realmente obtivemos um valor muito mais robusto, o que nos permitiu realizar um número de eventos e ações que não conseguíamos nos anos anteriores', disse Lemos.
Familiar de um jovem preso no interior de São Paulo, Valéria* afirma que qualquer denúncia feita por um prisioneiro só sairá da unidade por meio de um familiar e às escondidas. 'Se depender da carta escrita por eles e destinada à Defensoria, nunca chegará ao seu destino pois os funcionários barram, portanto, os parentes são esse elo essencial'.
Denúncias ao sistema carcerário enviadas à Defensoria Pública de São Paulo são, em sua maioria, fruto de visitas realizadas pelos defensores aos presídios e pelos parentes. Com base nessas denúncias, o órgão inicia uma investigação mais aprofundada, seja por meio de uma inspeção ou um pedido judicial de investigação. 'A família neste ponto é central, é quase impossível não ser parente de um preso neste caso [de denúncia]', disse o Defensor Público do Núcleo de Situação Carcerária, Diego Polachini.
'A Defensoria recebe muitas denúncias dos detentos por meio de contato direto e inspeção. Mas é muito pouco, porque não conseguimos estar em todos os lugares nem em todos os presídios ao mesmo tempo. Ninguém realmente entra na prisão [com frequência]. As únicas denúncias que podem vir são de parentes que fazem visitas aos finais de semana', relatou o defensor, confirmando que as cartas dos presos são censuradas pelos funcionários. 'Cabe aos parentes trazer essas denúncias, muitas vezes verbalmente'.
Ele acrescenta que é tarefa do Ministério Público e do Judiciário fiscalizar o sistema prisional, porém, uma inspeção completa raramente é realizada, na qual eles entram no presídio e conversam com os prisioneiros. 'Muitas vezes, esses prisioneiros são escolhidos pela própria administração, o que gera um relato muito tendencioso', disse Polachini.
Valéria afirma que a Defensoria Pública é tudo que as famílias e detentos têm, porém existe uma defasagem grande de defensores, que estão sobrecarregados e, por isso, muitas vezes não conseguem fazer todo o necessário para combater a tortura e crueldades no sistema prisional.
Segundo ela, seria fundamental responsabilizar funcionários e diretores pelas ações tomadas, mas os juízes usualmente ignoram denúncias de espancamentos, morte por negligência, então eles sabem que nada acontecerá a eles juridicamente e, assim, cada dia mais, o sistema prisional se torna mais agressivo e opressor e apresenta mais mortes.
A Defensoria Pública de São Paulo e o Mecanismo já receberam vários relatos de violações e ameaças contra parentes e detentos que fizeram alguma denúncia. 'O clássico é a pessoa fazer uma denúncia, chegar na visita seguinte e lhe é informado que a visita foi cancelada ou que a pessoa não retirou uma senha, inventam desculpas para que ela não consiga entrar e realizar a visita. Isso é recorrente em vários estados do Brasil', disse Lemos.
Ela acrescenta que também existe o descredito de familiares em espaços públicos. 'Por exemplo, se é uma pessoa que faz muitas denúncias, ela sofre processo discriminatório dentro dos órgãos e é negado que ela participe de reuniões. Inclusive, pessoas que foram expulsas de reuniões'.
A Defensoria de São Paulo também registra tentativas generalizadas de perseguir os denunciantes e inibir possíveis denúncias. 'Muitas vezes, os parentes que estão na fila para entrar no presídio têm que passar por um procedimento muito demorado, de revista, de scanner. Esse processo em si já é péssimo, mas esses parentes são constantemente ameaçados de 'gancho', que é a impossibilidade de visitação', disse Polachini.
Valéria reforça que os parentes são constantemente menosprezados e sofrem retaliação. 'Pois a denúncia feita à Secretaria de Administração Penitenciária é encaminhada diretamente ao diretor, que normalmente 'arma' uma investigação sobre o detento ou dá 'gancho' no parente quando ele vai visitar, alegando 'manchas' no scanner'.
Os detentos também relatam à Defensoria o medo de serem enviados para o castigo. 'O 'pote' é o castigo, é uma ala da prisão, geralmente pior que a prisão, onde os detentos são colocados individualmente e permanecem por 30 dias, às vezes até mais - o limite seria 30 dias. A possibilidade de você aplicar faltas aos presos pelos motivos mais genéricos possíveis é sempre uma ameaça sobre eles', detalhou Polachini.
'O Superior Tribunal de Justiça teve que decidir, no caso da Defensoria, que o preso não comer e reclamar da comida que estava estragada não é uma falta grave. Então qualquer tipo de reclamação dos detentos e dos familiares está sujeita ao controle desse diretor, que pode piorar as condições dos presos lá dentro e dos próprios familiares', acrescentou. Embora haja denúncias graves sobre violações de direitos, as instituições alertam que pode haver subnotificação devido ao medo generalizado de fazer uma denúncia.
Na cidade litorânea de Caraguatatuba, detentos do Centro de Detenção Provisória escreveram uma carta coletiva publicada neste mês relatando condições desumanas na unidade. Eles reclamaram da redução extrema da quantidade de alimentos e até da oferta de comida estragada, além de negligência médica. Durante um mês, os detentos receberam leite azedo e tiveram cortes na salada e no suco. 'E [esta chegando] feijão podre três ou quatro vezes por semana e arroz cru, sem nenhuma condição de comer.'
Após conhecer a denúncia, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, ordenou à ouvidoria do seu ministério que acionasse entidades estaduais e autoridades locais do sistema de justiça para investigar os fatos relatados na carta. 'Por favor, Direitos Humanos, ouçam esse grito de desespero', suplicaram os detentos.
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