Prevenir antes de tratar. É assim que o sanitarista José Gomes Temporão resume o caminho mais efetivo contra o câncer no Brasil: ampliar promoção de saúde, reduzir desigualdades e reorganizar o SUS para dar conta dos casos mais complexos.
"Acho que o primeiro ponto a ser destacado é a gravidade do problema do câncer, como um conjunto de doenças. Não é apenas uma doença, são dezenas de tipos diferentes. Em mais de 600 municípios brasileiros, já é a primeira causa de mortalidade, e a projeção da Organização Mundial da Saúde para as próximas décadas é que o câncer vai ultrapassar as doenças cardiovasculares e cerebrovasculares como principal causa de morte no mundo. O próprio IARC [Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, na sigla em inglês], que é o órgão da OMS para câncer, projeta 35 milhões de novos casos em 2050, em termos globais. No Brasil, o último número que nós temos do Inca, para o triênio que termina em 2025, é de cerca de 700 mil novos casos por ano."
"Quando a gente olha para o Brasil e para os países em desenvolvimento, chama muita atenção que, embora a incidência de casos não seja expressiva em termos globais, 70% das mortes acontecem hoje nos países de baixa e média renda. Então, tem uma questão aí de desigualdade, de iniquidade muito evidente, porque esses países de baixa e média renda não conseguem enfrentar o problema, nem do ponto de vista da prevenção e da promoção [da saúde], nem do ponto de vista do acesso ao tratamento, mesmo com as tecnologias mais tradicionais, como é o caso das quimioterapias, da radioterapia e da cirurgia."
Para reduzir essas diferenças, Temporão defende que os municípios atuem em redes regionais, com autonomia para contratar equipes, comprar insumos e organizar fluxos, diminuindo gargalos e tempos de espera.
"O Brasil dispõe de uma rede de atenção primária que, hoje, cobre 150 milhões de brasileiros, é a maior rede de atenção primária do mundo, mas com um desempenho muito heterogêneo. Quando você olha em termos de território brasileiro, as diferenças são gritantes, de cobertura e de qualidade, e é cada vez mais difícil você instalar serviços especializados nos municípios das regiões Norte e Nordeste, em comparação com a grande concentração tecnológica para diagnóstico e tratamento das regiões Sul e Sudeste, principalmente."
Segundo ele, a concentração de serviços e especialistas no Sul e no Sudeste amplia filas em outras regiões e compromete o início rápido do tratamento.
"Já para o tratamento, muitas tecnologias revolucionárias estão sendo trazidas pela biotecnologia, como a imunoterapia, que são moléculas que atacam diretamente determinados alvos dentro das células. Mas esses medicamentos podem chegar a milhões de dólares por paciente, completamente fora de possibilidade de incorporação pelo sistema de saúde dos países em desenvolvimento. E, aí, entra toda a discussão relacionada à dependência tecnológica, políticas de desenvolvimento da ciência, tecnologia e inovação e etc."
Ele aponta a necessidade de fortalecer a capacidade nacional de avaliar, produzir e incorporar tecnologias com justiça e sustentabilidade orçamentária.
"No Brasil, nós temos um instrumento muito importante, inclusive, que é a Conitec, a Comissão Nacional de Incorporação e Tecnologias no SUS. A gente se inspirou muito no modelo inglês, porque, lá na Inglaterra, praticamente 90% da população usa apenas o serviço público de saúde, e nada é incorporado no sistema público sem que esse órgão regulador aprove. A gente fez a Conitec um pouco no espelho disso, então, toda e qualquer tecnologia para ser incorporada no SUS tem que ser previamente aprovada pela Conitec, e tem que comprovar que o tratamento é custo-efetivo, que há orçamento disponível para compra."
"Primeiro, como eu consigo fugir da pulverização que nós temos no sistema de saúde hoje? Nós temos mais de 5 mil municípios no Brasil, e cada um é responsável pela saúde, com o apoio dos estados e do governo federal. E nós temos que romper com esse modelo e caminhar para o modelo de regiões de saúde, que congregam municípios, centenas ou dezenas, dependendo do contexto."
"Essas desigualdades territoriais e essas assimetrias entre os estados só serão resolvidas com uma regionalização efetiva, com um certo grau de autonomia para que essa região não fique dependente do governo federal, dos estados ou dos municípios. Para que ela possa contratar equipes, fazer compras. Na discussão que está sendo feita hoje, nós sairíamos de mais de 5 mil sistemas municipais para cerca de 400 regiões de saúde em todo o país."
"O outro ponto é: como eu garanto especialistas que lidam com a questão do câncer dentro de uma equipe multiprofissional de maneira equânime no território brasileiro? Eu vou dar um chute aqui que 80% dos cirurgiões oncologistas e oncologistas clínicos do Brasil estão no Sul e Sudeste. Com isso, nas outras regiões, com menos especialistas, o tempo de espera é muito maior."
"É importante compreender que a lei dos 60 dias foi aprovada com a melhor das intenções, foi resultado de lutas justas de uma série de movimentos sociais que defendem os direitos dos pacientes, mas é uma lei que serve mais como uma referência política do que como uma garantia real, porque essa garantia real só vai se dar quando a gente resolver esses gargalos da regionalização e da disponibilização de especialistas, de equipes multiprofissionais em todo o território brasileiro."
"Temporão: O rastreamento organizado é fundamental. Hoje, tem quatro tipos de câncer com rastreamento de rotina: colo de útero, retal, mama e próstata. E a unidade básica é onde as pessoas fazem esses exames. Ninguém começa sendo atendido num hospital especializado em câncer. Então, essas unidades tem que seguir os protocolos, e o médico de família tem que trabalhar com um cadastro atualizado das famílias que ele atende, considerando a faixa etária e o risco. Mas essa base também precisa ter um apoio de especialistas para recorrer em caso de dúvida. Agora, com as novas tecnologias, isso é a coisa mais simples que existe. Um médico de família, quando está suspeitando de alguma coisa, mas não dispõe dos instrumentos para decidir, pode fazer uma consulta por telemedicina com um especialista, que esteja em qualquer outro lugar."
"As novas tecnologias de comunicação a distância, como telemedicina e telesaúde estão ampliando muito o acesso. Mas a consulta física é fundamental pra se fechar o diagnóstico, evidentemente. Além disso, com a inteligência artificial, há a possibilidade de você melhorar muito a acurácia de um laudo de diagnóstico. O mundo inteiro já está usando isso, porque todo e qualquer diagnóstico que depende do olho humano tem possibilidade de erro, e já está mais do que validado que a fidedignidade de um laudo aumenta cada vez mais com a ajuda da inteligência artificial. Claro que você vai ter que ter o tempo todo uma revisão humana."
"O Eric Topol, que é um grande estudioso das tecnologias médicas, aposta que essas tecnologias vão libertar o médico de um conjunto de tarefas burocráticas, para que ele possa se dedicar mais de perto ao cuidado. Espero que ele esteja certo. A nossa expectativa é o resgate da famosa relação médico-paciente, que é fundamental em qualquer tratamento."
"Ah sim. Dez anos atrás, quando começou essa história de "doutor Google", as pessoas iam ao médico e já levavam dez páginas imprimidas de pesquisa. Agora é mais grave, porque, com a inteligência artificial, o paciente vai no ChatGPT e já vem pro consultório com tudo pronto. A gente também tem outra novidade, que são as redes sociais. Então, a gente precisa construir uma estratégia de comunicação, não só para fazer frente à desinformação, mas também para oferecer mensagens consistentes e culturamente adequadas. Uma coisa é você conversar com a população que mora na periferia dos grandes centros urbanos, outra coisa é tentar um diálogo com alguém que mora no interior do Nordeste ou na região Amazônica."
"Outro ponto importante é que é preciso ter muita transparência nos dados. Vamos olhar o exemplo do tabaco, que o Brasil é o maior sucesso mundial. No Brasil, há algumas décadas, o percentual de adultos que fumavam regularmente era mais de 30% da população e hoje ele está em torno de 10%. Mas a gente proibiu a propaganda em todos os meios. Teve um grande movimento de educação que começou nas escolas, os profissionais de saúde se envolveram. Hoje você caminha pelas grandes cidades brasileiras e você vê que a grande maioria da população não fuma. E como você alcança esse resultado? Tendo dados confiáveis e colocando para a sociedade com muita clareza e transparência."
