Espaços de consumo e ambientes de trabalho aparecem como os locais onde o racismo é mais evidente nas capitais brasileiras. Segundo o estudo "Viver nas Cidades: Relações Raciais", 57% citaram estabelecimentos comerciais como shoppings, lojas, restaurantes, mercados e farmácias entre os lugares com maior diferença de tratamento entre pessoas negras e brancas. O trabalho vem em seguida (44%), e as ruas e espaços públicos de convivência, como praças e parques, aparecem com 31%.
O levantamento ouviu 3.500 pessoas, por painel online, em Belém, Belo Horizonte, Fortaleza, Goiânia, Manaus, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo, para medir a percepção sobre discriminação racial e quais medidas são vistas como mais eficazes no combate ao problema.
Para Igor Pantoja, coordenador de relações institucionais do Instituto Cidades Sustentáveis, os dados mostram a força da discriminação em espaços privados de acesso público.
— "São espaços onde qualquer um pode entrar, mas quem está lá dentro está num espaço privado e, sendo de uma posição de poder mais acentuada, se sente protegido para cometer discriminação. São locais de encontro das diferenças sociais. Os dados mostram que os casos, até de assassinatos cometidos em supermercados e outros estabelecimentos, estão longe de serem isolados. Fica evidente que falta um compromisso maior e uma educação antirracista mais fortalecida com quem lida com atendimento ao público. Obviamente os desafios são maiores que isso, é uma questão da sociedade, mas é passado o momento de termos um compromisso direto das empresas, dos estabelecimentos comerciais e, por que não, do sistema educacional sobre como a gente supera essa cultura que vem de centenas de anos" — ressalta Pantoja.
Entre as capitais, Salvador (65%) e Belém (62%) tiveram as maiores menções à discriminação em estabelecimentos comerciais; Manaus registrou o menor índice (50%). Ainda assim, 10% dos entrevistados disseram não ver diferença de tratamento entre negros e brancos, e 12% não souberam responder.
Além de comércio (57%), trabalho (44%) e ruas e praças (31%), foram citadas escolas, faculdades e universidades (29%), transporte público (16%) e hospitais e postos de saúde (15%). No ambiente esportivo (quadras, estádios e clubes), 14% enxergam discriminação de forma evidente; 9% a veem no local onde moram; 6% em igrejas e templos; e 5% no ambiente familiar.
Pantoja observa que os resultados confirmam outros levantamentos e escancaram a discriminação em áreas com grande fluxo de pessoas e encontro de diferentes camadas sociais.
Embora o comércio seja o principal ponto de conflito, só 15% colocaram o posicionamento de marcas e empresas entre as três medidas que mais ajudam a combater o racismo na cidade. Ao mesmo tempo, 25% defenderam ações diretas das empresas com funcionários e clientes, e 22% pediram mais consciência em contratações e promoções de pessoas negras.
No geral, punição e educação lideram as respostas. Nas dez capitais, 42% apoiaram o aumento da punição a atos de injúria racial e racismo. Outros 34% apontaram o debate do tema nas escolas e a inclusão no currículo, e 33% destacaram punições mais severas para policiais que cometerem abusos contra pessoas negras.
— "A punição é a opção que geralmente aparece em primeiro lugar para qualquer coisa contra a lei. As pessoas pensam que aumentar a punição é mais rápido, mais fácil. Não é exatamente automático assim, a redução do crime. Existe um desejo de querer justiça, reparação nesse caso, mas não necessariamente é o caminho mais estruturante. A educação aparece em segundo lugar, a necessidade de educação antirracista, mas a gente sabe que isso avançou, tem legislações, mas ainda esbarram em questões diversas, no desafio de falar de identidade cultural negra, de religiosidade. A educação é um tema que aparece como valor, proposta, mas que ainda precisa de reforço, de um apoio social em relação a essa concretização" — destaca Pantoja.
Um caso recente em São Paulo foi citado como alerta para a importância de políticas efetivas de educação antirracista: quatro policiais militares teriam intimidado pais e professores em uma escola infantil na Zona Oeste. Eles teriam entrado armados, com um dos agentes portando uma metralhadora, após o pai de uma criança, um PM da ativa, se incomodar com o desenho de uma orixá feito pela filha em aula de educação antirracista. A corporação abriu procedimento para investigar a equipe.
Segundo o Instituto Cidades Sustentáveis, há consenso sobre a existência do racismo, e a população negra, alvo da discriminação, tem "uma visão mais crítica sobre as raízes estruturais do problema, defendendo com mais veemência as políticas afirmativas e o reconhecimento de privilégios como parte da solução".
Na comparação por cor, 42% de brancos e 42% de negros apoiam aumentar a punição para injúria e racismo. A educação foi citada por 36% dos brancos e 33% dos negros, e punições mais severas para policiais, por 32% e 34%, respectivamente.
As divergências ficam mais claras nas políticas afirmativas. Do total, 14% defenderam eliminar as cotas raciais em universidades e outras instituições; entre brancos, esse apoio foi de 18%, seis pontos acima do verificado entre pretos e pardos. Por outro lado, 11% pediram ampliar cotas em cargos de poder (diretores, juízes, políticos, médicos) e 8% nas universidades públicas. Entre pretos e pardos, o apoio foi de 13% e 9%; entre brancos, 8% e 6%.
Quatro em cada dez (41%) concordam que "aumentar a representatividade das pessoas negras na política e nos cargos de poder contribui para diminuir as desigualdades estruturais", enquanto 20% discordam totalmente ou em parte. Já 52% concordam totalmente que "a maior presença de pessoas negras e indígenas nas universidades é positiva para toda a sociedade", contra 15% que discordam total ou parcialmente.
Também houve percepção ampla sobre a urgência do tema: 44% concordam totalmente que "o racismo é um problema central da cidade e deve ser enfrentado com políticas públicas específicas". E 48% disseram concordar que "a violência policial afeta principalmente as pessoas negras".
Quanto ao papel da população branca no combate ao racismo, 49% responderam que é se informar mais e se educar sobre o assunto, e 32% apontaram a importância de "se reconhecer como parte do problema, identificando ações racistas nas pequenas atitudes, como gírias e piadas".
A pesquisa também mapeou o racismo ambiental: para metade dos entrevistados, pessoas negras têm "mais dificuldade de acesso à água potável, coleta e tratamento de esgoto". E 48% apontaram que os negros são mais afetados por deslizamentos, desabamentos, inundações e alagamentos.
A amostra considerou internautas de 16 anos ou mais, de todas as classes (ABCDE), residentes nas capitais pesquisadas há pelo menos dois anos. As respostas foram coletadas entre 1 e 20 de julho de 2025.
Os dados jogam luz sobre a desigualdade estrutural: entre brancos, 52% têm Ensino Superior, enquanto pretos e pardos se concentram no Ensino Médio (58%). Brancos estão mais presentes nas classes A e B (40%), enquanto pretos e pardos são maioria nas classes D e E (21%) e mais da metade entre quem ganha até dois salários mínimos (52%).
Segundo Pantoja, isso se relaciona à maior presença da população negra em trabalhos de menor qualificação e na informalidade, além do acesso mais precarizado à cidade. O desafio é pensar políticas públicas que reduzam a desigualdade, ao menos de forma geracional.
— "Tirar essa pessoa adulta desse ciclo é dificílimo, mas como fazer os filhos deles avançarem? Há dados de melhora dos filhos com relação à educação, casa em que mora, renda dos pais. Isso é bom, mas é preciso ter um olhar específico para a população negra. Talvez seja caminho para políticas públicas se debruçarem mais para garantir direitos, evolução e trabalho de qualidade" — afirma o especialista. — "E não é só acesso a oportunidades, mas políticas que apoiem essas pessoas. Cotas de acesso sem políticas de apoio, de reforço, podem perder efeito. A evasão é grande. Mesma coisa no mercado de trabalho. Se não tiver formas de dar suporte, de alavancar essa carreira, talvez esse esforço se perca" — ressalta.
O estudo informa nível de confiança de 95% e margem de erro de 2 pontos percentuais para mais ou para menos no total da amostra. Nos recortes por capital, a margem varia de 4 a 6 pontos, conforme o tamanho de cada amostra local.

