Logo de saída, um carrossel de cenas de TV situa a trama na História e reforça o elo cultural com o país: Trapalhões, Chacrinha, Tarcísio Meira e Glória Menezes, "Escrava Isaura". A sequência desemboca na chegada de um fusca amarelo a Recife, em pleno carnaval. Antes mesmo de a luz apagar, fica claro: "O agente secreto" é um filme brasileiro sobre o Brasil, celebrado em festivais e cotadíssimo para indicações ao Oscar.
Ambientado nos anos 1970, o longa expõe um Brasil de contradições. Retratos de presidente-ditador em repartições públicas, corrupção policial, violência banalizada e preconceitos que atravessam a sociedade — racismo, machismo, homofobia e xenofobia — compõem o pano de fundo de uma narrativa que recusa a nostalgia fácil.
Nesse cenário, Kleber Mendonça Filho constrói um thriller sobre um professor que foge de São Paulo para Pernambuco e esbarra em personagens marcantes e situações que viram lenda urbana — como a "perna cabeluda" retirada da barriga de um tubarão. O motivo da fuga demora a aparecer; o centro do filme, não: memória, busca pela verdade e vida sob paranoia e opressão, em diálogo com "Som ao redor", "Aquarius", "Bacurau" e "Retratos fantasmas", traçando pontes entre passado e presente do país.
Para quem sai do cinema com o impulso de gritar "sem anistia", o filme acerta em cheio — e sem panfleto. O poder, seja político, econômico ou militar, aparece na arquitetura das cidades e nas relações do cotidiano. Ao mesmo tempo, pulsa a história de um pai que ama e luta pelo filho, temperada por humor, mistério e a devoção do diretor à própria arte do cinema.
O professor se chama Marcelo e é vivido por Wagner Moura, em atuação afiada que combina rigidez e fragilidade. Ele tenta se manter correto em um ambiente corrompido, enquanto carrega culpas escondidas — um herdeiro dos thrillers paranoicos dos anos 1970, mas com o nosso sotaque. No entorno, Alice Carvalho, Hermila Guedes, Maria Fernanda Candido, Isabél Zuaa, Gabriel Leone e Tania Maria dão corpo ao Brasil múltiplo e cinzento da ditadura.
O resultado é ambicioso, popular, pulsante e cheio de camadas para debate: da política ao afeto, do suspense à deslumbrante Recife. "O agente secreto" encara o país com ironia e ternura, horror e beleza, refletindo sobre um passado que ainda assombra e um presente de idealismo e mudança. Com prêmios de direção e ator em Cannes e prestígio crescente, o filme chega forte aos cinemas — e mira alto na temporada de premiações.
