Cessar-fogo não é paz: ex-embaixador alerta sobre Gaza
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📅 09/11/2025

Cessar-fogo não é paz: ex-embaixador alerta sobre Gaza

Alessandro Candeas, que chefiou a representação brasileira na Palestina entre 2020 e 2024, lança livro, defende soluções locais, reconhece a legitimidade da ANP e lembra o protagonismo do Brasil na ONU e no maior resgate aéreo de brasileiros da História.

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Ronny Teles

Ronny Teles

Combatente pela democracia

Ex-embaixador do Brasil junto à Autoridade Nacional Palestina e atual cônsul-geral em Lisboa, Alessandro Candeas lança o livro "Peregrinação e Guerra — Anotações de um Diplomata na Terra Santa", no qual relata a experiência em Ramallah entre 2020 e 2024, em meio à guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas e à operação que repatriou brasileiros.

"O cessar-fogo [nos moldes em que foi estabelecido] não significa paz. As causas do conflito são estruturais, históricas, políticas, e permanecem sem solução. A segurança em Gaza não foi estabelecida, já que a violência interna persiste e o desarmamento é muito difícil. A questão dos refugiados — aqueles que foram expulsos durante e após o estabelecimento de Israel, em 1948, e hoje constituem a população do enclave — embora pouco comentada, também preocupa, assim como a necessidade de autonomia e estabilidade político-econômica do povo palestino. Sem contar que o armistício veio dois anos depois da proposta apresentada pelo Brasil no Conselho de Segurança da ONU, com um saldo em torno de 70 mil mortos. Houve uma hecatombe humanitária em Gaza. A guerra foi de tal dimensão, que, agora, é impossível falar em paz."

Para Candeas, não haverá estabilidade sem garantir direitos e perspectivas ao povo palestino, condição que também protege os israelenses. "Enquanto o povo palestino não puder exercer seu direito de autodeterminação, não haverá paz. A segurança de Israel passa pela segurança dos palestinos. Na medida em que os palestinos sofrem violências, são impedidos de circular no próprio território e vivem sem perspectivas, isso alimenta insatisfação e radicalização. Esse é o caldo no qual o extremismo se reproduz."

Ao discutir a governança no pós-guerra, ele sustenta que a Autoridade Nacional Palestina deve ser o eixo de reconstrução institucional. "A ANP é uma instância legítima. Mais de 140 países aprovaram recentemente a sua participação na Assembleia Geral das Nações Unidas. Não há outra alternativa. Defendo ainda a importância de novas eleições, visto que a última foi em 2006. A Palestina tem uma vocação democrática, e isso precisa ser respeitado."

O diplomata rejeita "modelos prontos" vindos de fora e cobra protagonismo local no desenho da paz. "A paz ali não pode ser imposta. É um processo de dentro para fora. O GPS ocidental não funciona para solucionar esse conflito. Existe a Terra Santa imaginada pelo Ocidente e a concreta. As fórmulas importadas, mesmo que bem-intencionadas, não capturam a realidade, nem as dinâmicas internas. Há que se ouvir os atores locais, fortalecer a sociedade civil e permitir que os palestinos e israelenses moderados construam caminhos próprios."

Candeas afirma que há lideranças capazes de construir pontes, mas que a guerra as sufoca. "Sim. Há lideranças moderadas, com representatividade local, e até legitimidade internacional, que querem a paz e seriam capazes de fazê-la. Mas um dos produtos maléficos da guerra é a inviabilização desses nomes. São líderes que podem construir pontes entre todos os grupos que compõem o território palestino e acabam silenciados pelo conflito. Sempre que há medo, discursos extremistas ganham mais espaço."

Entre os momentos mais marcantes, ele cita a operação de repatriação de nacionais durante a guerra. "A operação para repatriar os brasileiros. Nunca quis ler a manchete: "Brasileiros morrem em Gaza." E fizemos de tudo para que ela nunca existisse. Não se improvisa uma ação humanitária. Todas as embaixadas têm um plano de contingência. Quando o conflito eclodiu, tínhamos toda a estratégia de deslocamento e retirada das pessoas. Foi o maior resgate aéreo da História, com 1.592 repatriados. A minha experiência anterior, como chefe de Gabinete do Ministério da Defesa, lidando com questões militares, também permitiu um olhar de proteção dos nacionais."

Em sua avaliação, o Brasil voltou a exercer peso diplomático ao articular saídas negociadas e ao atuar em operações humanitárias, num contexto em que "o armistício veio dois anos depois da proposta apresentada pelo Brasil no Conselho de Segurança da ONU".

Candeas também relata o impacto humano de viver a guerra no cotidiano e a importância de reumanizar o debate. "Cheguei à Terra Santa esperando uma peregrinação espiritual, além da atividade diplomática, e encontrei uma realidade de tolerância e harmonia entre as religiões e também dos conflitos que se dão por conta delas. A dimensão humana se impõe. E costumo dizer que a primeira vítima da guerra não é a verdade — é a desumanização. A paz começa quando reconhecemos o outro como pessoa, antes de qualquer abstração, como a religião, o Estado ou a ideia. É sobre exercitar um olhar a partir das necessidades e das dores de uma pessoa. Um dos esforços dos agentes do conflito é negar que o outro sofre."

Apesar da devastação, ele afirma ter visto espaço para reconciliação concreta. "Vi sinais concretos disso. Conheci famílias, sobretudo mães israelenses e palestinas, que perderam seus filhos nos conflitos e, mesmo assim, se sentam para conversar e trabalhar pela paz. Ex-combatentes de ambos os lados que decidiram ir de encontro e fazer da guerra o principal rival. Essas pontes existem."

No livro, o diplomata reúne memórias do terreno e reflexões sobre como garantir segurança simultânea a israelenses e palestinos, partindo da autodeterminação, do fortalecimento institucional e da recuperação econômica.

A mensagem central de Candeas reforça que a pacificação duradoura depende de ouvir os atores locais e de sustentar a sociedade civil, para que moderados de ambos os lados voltem a ter voz e possam construir, juntos, os caminhos da paz.

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Publicado em 9 de novembro de 2025 às 13:16

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