Mães da favela viram alvo após megaoperação e desamparo no Rio
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📅 08/11/2025

Mães da favela viram alvo após megaoperação e desamparo no Rio

Sociológa aponta desumanização e sobrecarga de mulheres que sustentam lares nas favelas, sem creches e com escolas fechadas em operações; mais de 120 mortos expõem o colapso.

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Ronny Teles

Ronny Teles

Combatente pela democracia

As cenas de mães, tias e avós chorando sobre os corpos dos mais de 120 mortos na megaoperação nos complexos da Penha e do Alemão, na Zona Norte do Rio, correram o país. Como resposta imediata "em nome da segurança pública", o governo criou um Escritório Emergencial de combate ao crime organizado.

Ficaram de fora, por enquanto, medidas amplas para evitar novos colapsos urbanos e atender quem mais precisa. Em todo o estado, famílias de áreas precárias seguem sem políticas de educação e assistência social suficientes, enquanto crianças e adolescentes são diariamente aliciados pelo tráfico.

No Rio, pesquisa da universidade estadual indica que sete em cada dez casas em favelas são chefiadas por mulheres. As poucas opções de renda para muitas delas são o trabalho como domésticas ou babás; enquanto isso, seus filhos passam a semana com parentes, amigos ou até sozinhos.

Ananda Viana, autora do artigo "Maternidade na favela", doutora em sociologia pelo Iesp/Uerj e professora de Sociologia, analisou reações de youtubers e internautas que condenaram virtualmente as mulheres que choraram sobre os corpos ou foram ao IML pedir ajuda para reconhecer filhos desaparecidos. A avalanche de julgamentos, inclusive de um ex-político de São Paulo cassado por falta de decoro e de parte de seus mais de 2 milhões de seguidores, expôs a desumanização que atinge essas famílias.

"Ananda: Há um forte Índice de ausência paterna. Claro que não em todas as famílias. Mas, normalmente, pensando em núcleo familiar, há uma mãe e uma avó e os filhos. É comum essas famílias estarem em rede também. Principalmente na Antropologia, tentamos não pensar muito em família nuclear porque entendemos que as famílias são extensas: se expandem para as redes de ajuda, são conectadas outras através das casas, da vizinhança."

A cobrança sobre as mulheres cresce com a falta de serviços públicos e com o fechamento de escolas em dias de operação. Sem apoio do Estado, elas dependem ainda mais das redes de ajuda de vizinhas e parentes. "Ananda: Existe uma atenção maior nesse trabalho de cuidado a partir do território. Elas sentem mais ainda, dentro da ideia de uma certa ausência do Estado. Então, precisam depender mais das suas redes de ajuda. Na ausência de creches e do que acontece quando se tem operação militar e de quando escolas fecham, o que as mulheres precisam assumir para que o cuidado seja realizado é maior. Elas precisam muito contar com as redes de ajuda."

"Ananda: Quando a gente percebe que não há creches suficientes dentro da favela ou então que as escolas fecham em período de operação, as mulheres têm uma carga de trabalho aumentada. Ela precisa sair para trabalhar em tal horário e sabe que não vai conseguir deixar o filho na creche ou que não vai conseguir levá-lo à escola. Então, mobiliza a sua rede de ajuda. A falta de políticas públicas de atendimento social e até de equipamentos de educação potencializam suas responsabilidades."

"Ananda: Uma operação dessa magnitude gera efeitos tanto para a favela como na cidade. E há diferenças de discurso. Potencializa-se os discursos que desumanizam essas mulheres. Vimos políticos ou pessoas nas redes sociais dizendo que esses meninos envolvidos com tráfico tiveram esse caminho por culpa das mães, não é? Percebemos mais uma camada dessa desumanização. Essas mulheres já lidam com um estigma de outros marcadores como raça e território. E a coisa se amplia, fica mais complexa. E existem outros estigmas: se elas acessam políticas sociais como o Bolsa-Família, são acusadas de viver às custas do Estado; se buscam na Justiça os seus direitos, como pensão alimentícia, são desqualificadas e enquadradas como pessoas que só querem saber do dinheiro dos homens. São muitas camadas de desumanização. Elas são julgadas e condenadas individualmente por um fenômeno que é social."

Os estigmas se acumulam: se acessam políticas sociais, acusam-nas de viver do Estado; se recorrem à Justiça por pensão, desqualificam seus direitos. A culpa é empurrada para elas, enquanto causas estruturais seguem sem resposta.

"Ananda: Elas criam diversas estratégias para ganhar dinheiro. Existe dificuldade de entrada no mercado de trabalho formal, não tem estabilidade de renda. E vem a culpa individualizada pelo que aconteceu com os filhos. É tirada toda a carga dos outros fatores. Quando a gente vai puxando esses fios até chegar à raiz da situação, compreende que é um fenômeno, além de resultado de uma teia complexa econômica e territorial. Nesses discursos de julgamento também não se leva em conta todas essas estratégias para que os filhos delas delas não entrem para o tráfico. Elas sabem que é um mundo muito perigoso, procuram estratégias várias: vender bolo; conseguir, sim, auxílio do governo, pensão alimentícia, qualquer coisa para que os filhos delas não se enganem com essas possibilidades."

"Ananda: Existe uma atividade de cuidado muito nesse sentido da vigilância: tomar conta dos filhos, fazer com que estejam na casa de uma vizinha, de uma avó, de uma tia, para que eles não acessem os espaços ou as áreas da favela sozinhos, sem acompanhamento de um adulto, exatamente para que eles não se deslumbrem com esse universo diverso. Elas não querem que os seus filhos corram risco, não querem esse futuro para os filhos e estão numa correria, sem outras formas de auxílio. Seja do próprio pai, seja também do próprio estado."

Para a pesquisadora, a sociedade julga e condena individualmente mulheres que enfrentam um fenômeno social, atravessado por raça, território, pobreza e ausência de políticas públicas consistentes.

Sem creches suficientes e com escolas que fecham em períodos de operação, a carga de trabalho aumenta e a rede de ajuda vira a única saída possível para garantir cuidado e proteção.

Enquanto o choque repressivo domina a agenda, a vida nas favelas segue sob pressão: mães correm, vigiam, improvisam e lutam para manter filhos longe do crime. Sem políticas robustas e contínuas, a responsabilidade recai justamente sobre quem menos tem.

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Publicado em 8 de novembro de 2025 às 13:19

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