O projeto que regulamenta os serviços de streaming no Brasil dividiu o setor audiovisual. De um lado, pequenos produtores independentes criticam o texto aprovado. Do outro, grandes produtoras e distribuidoras defendem a proposta.
A Câmara dos Deputados aprovou na 4ª feira (5.nov.2025) o PL do Streaming (8.889/2025). A matéria segue para o Senado e, depois, para sanção ou veto presidencial.
O texto é de autoria do deputado Paulo Teixeira (PT-SP), atualmente licenciado para chefiar o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar. A relatoria ficou com Doutor Luizinho (PP-RJ).
O PL estabelece cota mínima de 10% de produções brasileiras nos catálogos e cria a Condecine-Streaming de 4% sobre a renda bruta dos serviços de VoD, com possibilidade de dedução para financiar conteúdos no país. Hoje, as plataformas de VoD não pagam a contribuição.
Especialistas e integrantes do mercado ouvidos apontam que a regulação é consenso. A divergência está nos detalhes: independentes, mais dependentes de fomento público, veem brechas que podem reduzir seu financiamento.
Em comparação internacional, a regulação brasileira é considerada discreta. Na França, plataformas como Netflix e Amazon investem de 20% a 25% das receitas em conteúdo local. Na Espanha, a reserva de produções nacionais chega a 30%.
Parte do setor queria números mais altos: alíquota de no mínimo 6% (o Conselho Superior de Cinema defendia 12%) e cota de 20%. O texto aprovado fixou 4% e 10%, respectivamente.
Para o pesquisador Giovanni Francischelli, o projeto corrige uma assimetria. "Os serviços [de streaming] atuavam e não contribuíam, enquanto todos os outros concorrentes, como a televisão por assinatura, o cinema, contribuem", afirma.
Um ponto sensível é o desconto na Condecine. A dedução reduz o repasse ao FSA, que hoje financia disputas de projetos de pequenos e grandes. Os recursos que deixarem de ir ao fundo poderão ser usados pelas plataformas em conteúdos próprios, normalmente feitos com grandes produtoras, o que pode reduzir espaço para independentes.
Outro foco de preocupação são os direitos das obras. Quando a plataforma produz conteúdo próprio, pode manter a propriedade intelectual. O projeto não veta a prática, o que críticos veem como risco de transferência dos direitos da produção nacional a empresas estrangeiras.
"Quase não seria uma produção brasileira, no sentido da lei, muito menos uma produção independente. Porque é um projeto que pertence à propriedade intelectual. Todos os direitos pertencem a essas empresas, que são estrangeiras", afirma Francischelli.
Uma carta-manifesto assinada por cineastas como Kleber Mendonça Filho, Anna Muylaert, Jorge Furtado e outros profissionais diz que o projeto põe "o futuro da produção audiovisual à mercê de empresas estrangeiras, esvaziando o papel da Ancine e do Estado brasileiro".
Carlos Augusto Calil, professor da ECA-USP e ex-diretor da Embrafilme, reforça a crítica sobre propriedade das obras: sem um mecanismo que garanta a titularidade aos produtores nacionais, "acaba sendo quase que uma produção estrangeira, em termos legais, só que feita com dinheiro público".
No dia 3.nov, houve o "Ato pelo VoD" em São Paulo, Rio, Salvador e Porto Alegre. Na Cinemateca Brasileira, profissionais pediram o adiamento da votação e criticaram impactos do texto sobre a produção independente. Participaram nomes como Laís Bodanzky, Alain Fresnot e Sara Silveira.
Bodanzky defendeu o cinema brasileiro "feito por nós mesmos, para a gente mesmo". Para ela, a classe artística "tem que garantir que o público brasileiro, que ama o cinema brasileiro, se veja, se assista, reconheça seus sotaques, as suas histórias, as suas piadas, os seus dramas, sem ser com um filtro de uma plataforma de streaming que vai dizer o que a gente tem para dizer".
Fresnot reconheceu que a classe está "dividida" e alertou que o PL "vai descaracterizar o nosso cinema e vai fragilizar a produção independente de pequenos, médios e ínfimos produtores".
Sara Silveira criticou a ideia de aprovar para ajustar depois: "Nós nunca mais vamos melhorá-lo porque isso está na mão de pessoas estranhas, como esse Doutor Luizinho, que a gente não sabe de onde saiu e que aprontou esse documento para nós". Ela afirmou ainda: "Os streamings podem, sim, ser bem-vindos nos nossos países, fazer os seus trabalhos, desde que eles sejam nossos, que eles trabalhem para nós. Eles são suficientemente ricos e bilionários para poder manter as suas enormes empresas e seus lucros".
O cineasta João Batista de Andrade disse que "as empresas de streaming vieram para cá sem doar nada, como quem não queria nada, ocuparam o espaço no momento em que a gente estava fraco, desorganizado. Agora é preciso mostrar que a gente não aceita essa negociação". Para ele, "a população tem uma dificuldade enorme de se reconhecer, porque tudo que se faz na política brasileira dominante é exatamente apagar a identidade do brasileiro com relação ao seu país". E concluiu: "Nós queremos o espaço que merecemos".
As plataformas, representadas pela Strima, manifestaram preocupação com o texto. Segundo a entidade, "Mais uma vez, o setor efetivamente regulamentado pela legislação em análise não foi ouvido em relação a pontos cruciais para a previsibilidade e continuidade de seus investimentos na produção audiovisual brasileira". A associação falou em "distorções entre segmentos do mesmo mercado" e disse que o PL "estabeleceu regras não isonômicas". Também criticou a cota de 10% por desconsiderar dados sobre capacidade de produção e oferta de obras independentes no país.
Já a API, que reúne produtores independentes, pediu alíquota de 12% para a Condecine-Streaming, em vez dos 4% aprovados, e a manutenção da possibilidade de dedução da contribuição para financiar produção original das plataformas.
Grandes produtoras e distribuidoras como O2, Gullane, Paris Produções e Imagem Filmes apoiaram a proposta em carta. Para elas, o texto "representa um avanço pragmático e robusto na regulamentação do Conteúdo Audiovisual por Demanda" e "consolida pontos cruciais para o desenvolvimento e a sustentabilidade do audiovisual brasileiro". O exibidor e dirigente setorial André Sturm chamou a aprovação de "vitória do cinema brasileiro" e disse que "a lei não é perfeita, mas é uma grande vitória".
Com a aprovação na Câmara, o debate migra ao Senado. A decisão final caberá à etapa de sanção ou veto na Presidência, enquanto o setor segue mobilizado para ajustar pontos centrais da política para o streaming.

